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"O câncer de mama não espera”, alerta médica mastologista

“O câncer de mama não espera”, alerta médica mastologista

A mastologista Anna Paola Noya Gatto é referência quando se fala em diagnóstico precoce. A frente da Clínica da Mulher desde 1991, quando a fundou, a doutora Anna sempre levantou a bandeira para o assunto da saúde da mulher por meio da prevenção das principais patologias, não apenas no mês de outubro. Ela, inclusive, ainda nos anos 1990, realizava duas vezes ao ano campanhas de prevenção – uma delas no mês de outubro. Vale ressaltar que a campanha do Outubro Rosa, campanha criada para promover a conscientização sobre o câncer de mama, só foi surgir em 2010. Nesta entrevista, Anna Paola lembra do período em que iniciou sua própria campanha, os avanços da medicina nos últimos 30 anos, e o impacto que a Covid-19 causou no diagnóstico da doença.

A senhora é pioneira na Bahia, levantando a pauta do diagnóstico precoce desde os anos 90, antes mesmo de o tema se tornar uma campanha nacional. Como era o cenário naquela época?

Por incrível que pareça, é quase ainda como o de hoje. Pouca coisa mudou. Quando vim da Itália, trouxe um modelo italiano de prevenção, de diagnóstico precoce, e instituí lá na minha clínica, na primeira clínica, isso em 1992. Comecei indo em várias comunidades carentes de Salvador, inclusive também em Catu, Mata de São João, aquela região toda, seja onde tivesse algum centro que pudesse e aceitasse que eu fosse levar essas palestras, eu ia. Fui em todas as Cajazeiras, em paróquias ou colégios. Entrava em contato com esses locais e perguntava se eu poderia ministrar palestras educativas.

E assim começou uma ação que chamei de ‘Seja um Beija-flor, Faça a Sua Parte’. Eu ia nessas comunidades carentes ensinar a fazer o autoexame das mamas, explicar o que era o câncer de mama, quais os sinais, os sintomas que eram importantes que elas percebessem, os exames que elas deveriam fazer e a época que elas deveriam estar realizando esses exames. Lembrando que o Outubro Rosa foi instituído no Brasil pelo INCA em 2010, então, naquele momento a gente não falava de outubro.

Eu realizava as minhas campanhas duas vezes ao ano, em maio, por ser o meu mês de aniversário, mês de Maria e das mulheres; e como eu sou devota de Nossa Senhora Aparecida, eu também fazia em outubro. Não tinha nada a ver com o Outubro Rosa, era meramente coincidência. Comecei fazendo essas campanhas e ia com minha equipe de colaboradoras para me ajudar, fazendo as filas, para eu poder fazer as palestras e depois eu examinava as mulheres nesses locais. Geralmente, eles nos sediam algum espaço, a gente levava uma maca.

De acordo com esses exames, eu selecionava mulheres para vir à minha clínica, na época ainda no Centro Médico do Vale, no Vale do Canela, e realizava gratuitamente a mamografia nessas mulheres. Com isso, nós identificamos as lesões benignas ou malignas. E as malignas, eu mesma juntamente com minha equipe dávamos segmento e fazíamos as cirurgias delas na época. Eu também trabalhava no Hospital Aristides Maltez e dávamos o encaminhamento para essas pacientes. Isso foi durante muitos anos. A coisa foi aumentando, eu me tornei rotariana e o Rotary Club da Bahia aceitou essa missão também, fazer parte dessa minha missão, e demos continuidade. Dessa forma, conseguimos fazer para mais pacientes porque contamos também com o apoio dos rotarianos. Nós conseguimos realizar muito mais mamografias para essas mulheres.

A coisa foi caminhando, caminhando, caminhando, sempre evoluindo positivamente. Quando foi em 2010, veio realmente o chamado Outubro Rosa e demos continuidade. Tiramos o nome ‘Seja um Beija-flor’, já que não éramos mais um só beija-flor, já podíamos contar com a própria Sociedade Brasileira de Mastologia e a Sociedade Regional de Mastologia, e fazendo também todo esse programa. Isso fez com que muitas mulheres fossem beneficiadas com as mamografias que são dadas gratuitamente, oferecidas pelo Governo, Prefeitura, e é onde nós estamos. Estamos, então, em 2022, e continuamos com as palestras, dando esse atendimento também a todas essas mulheres. É algo contínuo e continuamos fazendo e cumprindo a nossa missão.

Apesar de particular, a clínica possui programas populares e mais acessíveis, voltados para mulheres sem plano de saúde. Como funcionam?

Temos alguns grupos de mulheres que fizemos parceria. Cada ano a gente foi mudando. Desde o ano passado nós estamos atendendo o programa Marias da Construção. Uma paciente daqui da clínica, Maria do Amparo, criou esse programa, Marias na Construção Civil, e é formado por mulheres carentes. A gente traz essas mulheres para fazer os exames aqui na clínica. Inclusive, dia 27 eu estou indo lá, dar uma palestra para o público de lá.

Normalmente, funciona dessa forma. A gente vai, eu faço palestras e a gente identifica aquelas mulheres que precisam estar realizando esse exame gratuito aqui na clínica. Já é uma programação que temos todos os anos. E não funciona só em outubro. No caso desse projeto que a gente tem com a Marias na Construção, quando elas identificam que tem alguma mulher com algum sintoma, elas nos encaminham essa paciente, essa mulher, e a gente faz os exames também, gratuitamente. É uma ação contínua que a gente tem, mas que no Outubro Rosa ela acaba tendo maior visibilidade.

De que forma é possível encaminhar essas paciente para um tratamento?

Hoje temos vários hospitais oncológicos em Salvador, não só o Aristides Maltez, mas o Hospital da Mulher, o Hospital Irmã Dulce, o próprio Roberto Santos. Aqui na clínica eu tenho médicas que trabalham em todos esses hospitais. A gente acaba tendo um pouquinho mais de facilidade, digamos assim, de encaminhar para o atendimento. Depois que a gente faz um diagnóstico, a gente faz um relatório e faz o encaminhamento para essas instituições e elas entram numa fila, normalmente, mas logo são atendidas, porque já têm um diagnóstico do câncer. Elas são logo operadas e dão continuidade ao tratamento normalmente nessas instituições.

Quais as medidas diárias essas pacientes podem adotar?

Nós recomendamos que todas as mulheres façam anualmente a mamografia, com ou sem sintomas. Mas aquelas que têm sintomas, que já diagnosticaram nódulos mamários, que elas façam antes dos 35 anos de idade. Principalmente, mulheres que têm no histórico familiar também casos de câncer. Se essa mulher tiver uma mãe, uma irmã, uma tia, uma avó que teve um câncer de mama, ou um câncer de ovário, ou um câncer de tireoide, pedimos que essas pacientes comecem a antecipar os seus exames.

Sabemos que, nesses casos, essa paciente poderá ter e poderemos antecipar o diagnóstico, já que hoje muitas mulheres jovens têm o câncer de mama. Nós estamos aí com 4% a 5% de mulheres jovens, eu digo com menos de 35 anos de idade, sendo diagnosticadas com câncer de mama. Se nós conseguirmos identificar essas lesões logo no início, vamos dar a elas tratamento conservador, ou seja, evitando a retirada das mamas e garantindo a ela uma sobrevida longa ou até mesmo a cura, já que hoje a gente tem como garantia a essas pacientes até 95% de chance de cura quando a gente faz esse diagnóstico logo no início.

Nos anos 1980, o câncer de mama era tratado como uma única doença. Nos últimos anos, ficou entendido que, na verdade, se tratam de várias doenças diferentes. Quais outros avanços significativos houveram nesse sentido?

O tratamento medicamentoso. O tratamento mudou radicalmente. Eu tenho 36 anos de formada, trabalhei no Hospital Aristides Maltez durante quatro anos e, naquela época, a gente só conhecia um tipo de cirurgia: retirada total da mama. Depois, a gente passou a ter cirurgias conservadoras, de acordo com o estágio. Já passamos a, digamos, reduzir a quantidade de tecido mamário retirado, as quadrantectomias. Depois, passamos para setores, setorectomia.

Hoje já estamos na tumorectomia, que significa a retirada somente daquela região que está o nódulo, que está o tumor. E o tratamento medicamentoso, ou seja, quimioterápico, hoje mudou muito. De acordo com o tipo histológico, o grau nuclear, a gente institui determinados protocolos de quimioterapia. Isso foi um avanço imenso. Antes, para todas as pacientes, era um único protocolo, como se fosse um combo, com três medicamentos, que normalmente a gente utilizava. Três ou dois. Hoje, as pacientes têm a possibilidade de usar uma gama infinita de medicamentos em formatos de novos combos.

Novos protocolos de acordo com a idade, com o tipo de tumor, com grau histológico, grau de comprometimento, metástase, então, uma série de variantes hoje nos ajudam a identificar um melhor tratamento para essa paciente. Isso faz com que haja um aumento da sobrevida. A medicina evoluiu muito. São 36 anos nesse sentido, ano após ano. A gente vê que mudou muito. Outra coisa também muito importante, além do tratamento, é o diagnóstico, o próprio diagnóstico.

Hoje nós temos aparelhos de altíssima resolução, que são os mamógrafos digitais. Isso nos permitiu um avanço grande na identificação daquelas microlesões e das microcalcificações. Além disso, alguns aparelhos de ultrassom também. Aqui na clínica, por exemplo, são nove aparelhos de ultrassonografia, todos novos. Para quê? Para que a gente possa aumentar mais ainda a sensibilidade do exame. Eles permitem uma resolução imensa. A gente tem identificado lesões muito pequenininhas. Hoje, nós aumentamos o número de pacientes diagnosticados logo no início.

A idade média no Brasil para a frequência do câncer de mama em mulheres é de 53 anos, abaixo de países como os Estados Unidos, que é de 63 anos. Quais os fatores para chegarmos nesses números?

No Brasil e nos Estados Unidos estamos mais ou menos com o mesmo tipo de incidência. A maior parte ainda são as mulheres na menopausa, mulheres com mais de 45 anos de idade. Esses 4% a 5% é que estão abaixo dos 35 anos de idade, em termos de incidência. Lembrando que mulheres também idosas, com 80, 90 anos, também têm câncer de mama. Por isso que a gente recomenda que nenhuma mulher deixe de realizar a mamografia, independentemente da idade.

Nós temos fatores hereditários. Depois há todos os fatores ambientais que hoje estão contribuindo com o aumento do número de pessoas com câncer. O estresse da vida sedentária, um alto consumo de alimentos com substâncias cancerígenas, os enlatados, todos têm substâncias cancerígenas. A própria ingestão de água, por exemplo, tão bobinha, em garrafas plásticas. Se você deixar uma garrafa plástica no carro, depois você vai consumir aquela água, ela é uma água contaminada.

Tem uma série de coisinhas que hoje estamos fazendo errado, a gente come errado. Entre as mulheres que ainda insistem nos maus hábitos do fumo, tem aquelas que bebem muito, então, uma gama de fatores. A própria poluição também contribui. Mas, principalmente, a hereditariedade, daquelas famílias em que há várias pessoas com câncer. Ela realmente é uma forte candidata a desenvolver um câncer.

É recomendado que mulheres com idade acima dos 40 anos realizem a mamografia, no entanto o SUS oferece o exame apenas depois dos 50 anos. Qual o motivo para esse atraso? E qual o impacto que isso pode causar na vida das mulheres que dependem do sistema público?

Imenso. Infelizmente, é essa a realidade. O SUS realmente preconiza a mamografia a partir dos 50 anos. Às vezes, somente até os 65 anos de idade. É um atraso de vida. É um atraso, infelizmente, é um atraso. É uma mudança que precisamos fazer com urgência, porque existe uma lei que obriga o governo a dar mamografia para todas as mulheres. Isso não é cumprido. Todas as mulheres têm direito à mamografia, não deveria ser em forma de campanha somente em outubro, não.

Deveriam ter hospitais, clínicas, para realizar a mamografia para esse público. E lembrando que não é só a mamografia, tá? Essa paciente vai fazer o tripé, que é o exame físico das mamas, pelo especialista, a mamografia digital, de preferência, e a ultrassonografia das mamas e das axilas. Esse tripé é que leva a um diagnóstico precoce. Não é só a mamografia, a mamografia faz parte dos exames. É sempre importante dizer isso.

A pandemia da Covid-19, em 2020, deixou um atraso na identificação da doença, comprovada com o aumento do número de mastectomias devido às lesões terem sido diagnosticadas em estágios mais avançados. Como é possível diminuir esses números?

Agora é correr atrás do prejuízo, incentivar que as mulheres que não realizaram exames durante a pandemia que realizem logo esse tripé, a consulta com mastologista, mamografia, ultrassom da mama e das axilas, para que a gente consiga, caso essas mulheres já tenham desenvolvendo o câncer, que a gente consiga antecipar um pouquinho e fazer logo esse diagnóstico. Realmente, aconteceu isso e não foi pouco não.

Eu conheci vários casos de pacientes que, infelizmente, tiveram atraso. Elas não conseguiam marcar médico, não conseguiam fazer os exames ou porque realmente estavam com medo de sair de casa e não fizeram. E quando foram fazer, os tumores estavam já avançados. Eu diria que é isso, correr contra o tempo. Câncer de mama não espera. O médico não pode bater na porta de ninguém, é a paciente que tem que bater na porta do médico.

Essa mulher precisa ir buscar a consulta. Se for no SUS, que ela busque no SUS. Se ela não encontrar uma mastologista, que ela pelo menos vá num ginecologista. Não é o ideal, mas se for o caso. E que ela busque as instituições que têm mastologista, pelo SUS, no caso, nesses hospitais que eu mencionei. Mas é muito importante que essas mulheres tenham acesso aos exames.

 

Fonte: A Tarde

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